Em comunhão com todos os santos
Leituras: Ap 7,2-4. 9-14; 1 Jo 3, 1-3; Mt 5, 1-1 a
Festejamos, hoje a cidade do céu,
a Jerusalém do alto, nossa mãe, onde nossos irmãos, os santos, vos cercam e cantam eternamente o vosso louvor.
Para essa cidade
caminhamos, pressurosos, peregrinando na penumbra da fé.
Contemplamos, alegres na vossa luz, tantos membros da Igreja, que nos dais como exemplo e intercessão. (
Prefácio de todos dos Santos).
Em Cristo brilhou para nós a
esperança da feliz ressurreição.
E, aos que a certeza da morte entristece, a promessa da imortalidade consola... Para os que crêem em vós
a vida não é tirada, mas
transformada (
Prefácio dos defuntos).
Estamos nos aproximando da conclusão do Ano Litúrgico,
que vai acabar no 34o domingo do Tempo Comum, domingo no qual
celebraremos a solenidade de Cristo, Rei do Universo. No pano do fundo
se contempla a imagem gloriosa do Cristo, origem e término do caminho da
história da salvação, e da mesma criação (cf Cl 1, 15-16). Esta
estreita relação de toda a realidade a Cristo está simbolicamente bem
expressa pelo movimento do Ano Litúrgico ao redor da páscoa.
Com profunda sabedoria espiritual, a esta altura do Ano
Litúrgico, a Igreja celebra em sequência a Solenidade de Todos os Santos
e a memória de todos os defuntos - ordinariamente nos dias 1 e 2 de
novembro; no Brasil, a Solenidade de Todos os Santos, por motivos
pastorais, foi transferida para o domingo como veremos. Nos santos, ela
contempla alegre e agradecida, a manifestação mais plena da fecundidade
da páscoa do Senhor e os frutos que o Espírito tem produzido em tantos
discípulos e discípulas de Jesus. Com os defuntos, a Igreja confirma a
comunhão fraterna que une na mesma fé todos os membros do povo de Deus
peregrino na história, e a esperança de partilhar a plenitude da vida na
casa do Pai, junto com todos aqueles e aquelas “
cuja fé somente Ele conhece” (Oração Eucarística IV).
As duas celebrações exprimem as duas faces inseparáveis
da participação ao Mistério Pascal de Cristo: a comunhão fraterna no
caminho da fé e a esperada partilha da plenitude da vida em Cristo. O
caminho da fé se desenvolve através da complexidade e das contradições
próprias da existência humana, cujo cume imediato e dramático é a morte,
cuja meta, porém, é a plenitude da vida na “ressurreição da carne”,
como se exprime a solene profissão de fé que recitamos todos os
domingos. O Verbo de Deus assumiu livremente nossa condição humana, e a
libertou da sua caducidade com sua morte e ressurreição.
A esperança cristã, não anula o sofrimento e o medo da morte, mas
antecipa este processo dinâmico da fé e da vida, e o contempla realizado
no próprio Cristo ressuscitado, primogênito dos ressuscitados (cf Cl 1,
18).
“Em Cristo, brilhou para nós a esperança da gloriosa
ressurreição... Para os que crêem em vós a vida não é tirada mas
transformada” (Prefácio dos defuntos).
O que “consola”, isto é, o que sustenta o cristão diante do drama da
morte, não são palavras de sabedoria e de solidariedade humana, mas é a
esperança de participar à ressurreição do próprio Cristo. Os santos, dos
quais hoje celebramos a memória, constituem o exemplo crível de pessoas
que, pela própria conformação ao Cristo, conseguiram apreender a viver
como ressuscitados desde o presente, segundo a potencialidade interior
que o batismo desperta como semente de ressurreição.
“Se pois,
ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas do alto, onde Cristo está à
direita de Deus. Pensai nas coisas do alto, e não nas da terra, pois
morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus: quando
Cristo, que é vossa vida, se manifestar, então vós também com ele sereis manifestados na glória” (Cl 3, 1-4)
Se, por razões pastorais, com a intenção de facilitar a
participação dos fieis, - como acontece no Brasil - a Solenidade dos
Santos é transferida ao domingo seguinte, separando-a de alguns dias da
memória dos defuntos, é preciso salvaguardar, com sábia pedagogia
pastoral, a unidade interior que une as duas celebrações. Ela ilumina o
mistério da morte e da vida com a luz da páscoa de Cristo, e fundamenta
corretamente a devoção aos santos, que o povo cristão gosta tanto, e nem
sempre, porém, vive em maneira iluminada e fecunda.
Os textos dos prefácios citados ao início desta meditação confirmam a
unidade de horizonte das duas celebrações. Gostaria sugerir, come
exercício de uma especial
Lectio Divina pessoal, uma leitura
meditada paralela dos seus textos bíblicos e litúrgicos. É significativo
como a Igreja, ao celebrar o mistério da páscoa do seu Esposo, na
Oração Eucarística, lembra em conjunto a memória dos defuntos e dos
santos, enquanto pede a intercessão destes para o povo ainda peregrino
na fé. “
Communicantes et memoriam celebrantes... omnium sanctorum tuorum”, diz o venerável Cânon Romanu
s. “Em comunhão com todos os santos...
nós vos pedimos”, repetem também todasas novas Orações Eucarísticas, como expressão de uma mesma e constante fé e espiritualidade pascal.
Com a primeira leitura (Ap 7), o profeta, na luz do Espírito
vislumbra o sentido profundo dos acontecimentos dramáticos da história
do seu tempo e de todos os tempos, e a vitória de Deus sobre os inimigos
da vida. Na verdade, somente em Cristo morto e ressuscitado, a história
desvela seu mistério, como exprime o grande símbolo do Cordeiro
imolado, porém vivente, Ele, o único a ter a capacidade de abrir os
selos que fecham o livro da vida, e que ninguém consegue ler e menos
ainda entender (cf Ap 5,6-14).
Com a linguagem simbólica própria do gênero literário chamado de
“apocalíptico”, enquanto utilizado em escritos cujos autores pretendem
anunciar acontecimentos misteriosos e desvelar o sentido oculto deles,
São João interpreta a sofrida situação dos cristãos do seu tempo, e abre
os corações deles à esperança da salvação, pois Deus já mostrou sua
potência ressuscitando Jesus dos mortos.
O autor inspirado oferece seu anúncio, através de imagens que evocam o
êxodo de Israel do Egito e uma solene liturgia no templo, onde o
Cordeiro pascal imolado se apresenta vivente. Tais imagens, para os
leitores cristãos evocam experiências espirituais mais profundas: a
experiência da libertação do pecado no batismo, e a do culto ao Senhor
Jesus, Morto, Ressuscitado e glorificado à direita do Pai. Ele anima e
guia o caminho do seu novo povo.
A imagem do anjo que traz a marca, o selo, do Deus vivo, e impede aos
anjos exterminadores de danificar a criação “até que tenhamos marcado
na fronte os servos do nosso Deus” (Ap 7, 2-3), é imagem altamente
evocativa por aqueles que tinham recebido o selo do Espírito no batismo.
O sangue do cordeiro, imolado na tarde que precedia a primeira páscoa
de Israel, posto em cima da porta das casas dos israelitas, indicava
que os moradores pertenciam ao povo de Israel, e por isso ao Senhor. Ao
ver o sangue ele “passa além” (o verbo hebraico indica a “páscoa” como
“passagem” do Senhor ), e poupa as famílias de Israel do extermínio dos
primogênitos do Egito (cf Ex 12,7-14).
O selo do Deus vivo que, na visão do Apocalipse, marca os servos do
Senhor, constitui o sinal de proteção e de pertença definitiva ao
Senhor. “Pertencer ao Senhor” significa ser introduzido por graça e
ficar numa relação profunda com ele, sendo constituído em comunhão
permanente com ele mesmo. O escolhido ganha uma nova identidade,
expressa pelo “nome novo” que lhe dá o próprio Senhor. “
Não temas, porque eu te resgatei, chamei-te pelo nome: tu és meu.... Não temas, porque estou contigo” (Is
41, 1.5). O profeta anuncia que a antiga eleição pelo Senhor, é penhor
de nova experiência de libertação, graças ao derrame do seu Espírito,
que cria uma pertença definitiva ao mesmo Senhor: “
Derramarei o meu
espírito sobre a tua raça, e a minha bênção sobre os teus
descendentes.... Este dirá: ‘Eu pertenço ao Senhor!’. E aquele se
chamará pelo nome de “Jacó”. Enquanto aquele outro escreverá na sua mão:
‘Pertenço ao Senhor!’, e receberá o nome de “Israel”( Is 44, 3.5).
Os profetas resumirão o sentido profundo da aliança de Deus com Israel, na famosa fórmula “
Eu serei Deus para vocês, e vocês serão povo para mim” (cf Jer 31,33b; Ez 37,27).
O apóstolo Paulo diante dos coríntios, que estão desconfiando da
fidelidade do apóstolo à palavra dada, afirma com vigor que a capacidade
de ficar fieis a Cristo vem de Deus, graças ao dom do Espírito, selo de
Deus e penhor de vida nova: “
É Deus quem nos mantém, a nós e a vós, fieis a Cristo; ungiu-nos, selou-nos e pós em nosso coração o Espírito como penhor” (2 Cor 1, 21-22). (tradução da
Bíblia do Peregrino).
O Espírito é a “unção” que conforma a Cristo, o “Ungido” do Pai; guia
o discípulo no seguimento e na sua imitação, e atua na consciência do
batizado como penhor da vida eterna (Rm 8, 9-11). E na grande
perspectiva da vida cristã, como expressão do dinamismo da santa
Trindade, o apóstolo sublinha: “
Por meio dele (Cristo), também vós,
ao escutar a mensagem da verdade, a boa notícia da vossa salvação, nele
crestes, e fostes selados com o Espírito Santo, que é garantia de nossa
herança, do resgate de sua posse: para louvor de sua glória” (Ef 1, 13-14) (tradução da
Bíblia do Peregrino).
Pelo contrário, “
se alguém não tem o Espírito de Cristo, não lhe pertence” (Rm 8, 9).
Pertencer ao Senhor, graças ao dinamismo transformador do Espírito, é
graça, vocação e tarefa. É processo dinâmico, que acompanha o discípulo
de Jesus do batismo até a morte, acolhida na fé, como o último mergulho
nas águas da páscoa de Cristo, o seio materno que no Espírito gera à
vida nova e eterna.
A história é o tempo, concedido pela misericórdia de Deus, no qual o
anjo do Senhor está marcando na fronte dos eleitos o selo que indica a
pertença ao Senhor. É tempo de espera e de misericórdia. É tempo de
trabalho incessante, pois o anjo há de marcar com o selo de Deus, não
somente os descendentes de Abraão e de Jacó (os simbólicos cento e
quarenta e quatro mil...), mas também “
a multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, que ninguém podia contar” (Ap 7, 4.9).
Todos os seres humanos, e cada um segundo suas especificidades, são
acolhidos entre os “escolhidos” por Deus. O Cordeiro que está junto de
Deus, com seu sangue resgatou todo ser vivente (Ap 7,13). No Cordeiro, o
original projeto de Deus voltou às suas origens, e a seu cumprimento,
ao mesmo tempo. A confluência no novo povo de Deus no dia de
Pentecostes, por parte de alguns judeus e de membros dos povos pagãos
(cf At 2, 1-11), constitui uma antecipação e uma profecia da universal
convergência na casa de Deus de todos os povos, na Jerusalém celeste.
A Igreja, afirma a constituição
Lumen Gentium, “
é em Cristo como que o sacramento ou sinal e instrumento da intima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano”
( LG1). Enquanto continua peregrinando no tempo e nas vicissitudes
humanas, ela nos oferece, na luz da fé e na celebração da sagrada
liturgia, uma antecipação da realidade plena que o Espírito do Senhor
está misteriosamente construindo dentro das pessoas, das culturas e das
experiências humanas de sabedoria espiritual.
A peregrinação da Igreja chegará à sua meta definitiva, e a liturgia
provisória da terra cederá seu lugar à liturgia celeste e perene, que é o
cântico de louvor dos salvados. Todos os justos desde Adão, “
do justo Abel até o último eleito”, serão congregados junto ao Pai na Igreja universal (São Gregório Magno,
Hom in Ev, 19,1; LG 2).
A memória dos defuntos e a solenidade de todos os santos nos oferecem
de antemão um generoso antegozo desta realidade escatológica. Elas nos
empenham a nos tornarmos promotores de comunhão e de paz, entre as
pessoas, as culturas, as religiões.
As duas celebrações interpretam, juntas, a realidade profunda de toda vida cristã: “
Vede
que grande presente de amor o Pai nos deu: de sermos chamados filhos de
Deus! E nós o somos!...caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas
nem sequer se manifestou o que seremos! (1 Jo 3, 1-2 - 2 leitura).
Este é o tesouro precioso que os “
puros de coração” conseguem vislumbrar desde já e que alcançarão no reino de Deus. Esta é a herança divina reservada aos “
pobres em espírito” (Mt 5, 3.8 – evangelho ).
Conscientes dos nossos limites, mas animados pela esperança suscitada
ao contemplar a nova humanidade que segue cantando o Cordeiro na
Jerusalém celeste, juntos com a humanidade inteira imploramos ao Senhor:
”
que a vossa graça nos santifique na plenitude do vosso amor, para
que, desta mesa de peregrinos, passemos ao banquete do vosso reino” (Oração depois da comunhão).